Conto de Priscila Guerrero

Robert Evans

O nome desta cidade pouco importa. Basta saber que era pequena, castigada pelo sol, possuía uma rua principal, com suas lojas feitas de madeira, algo simples e rústico. Havia uma fonte de água, onde os moradores e viajantes podiam amarrar seus cavalos, para que estes pudessem descansar das longas viagens cruzando o Arizona.

A vida seguia devagar, aquele ano de 1890 custava a passar. Cada viajante que chegava era bem recebido pela população, que com ele buscava novidades e notícias do governo. Aquele lugar era realmente esquecido, largado e só se parava ali, porque não havia melhor opção naquela região.

Robert Evans estava cuidando de seus afazeres no armazém. Limpava as prateleiras, empilhava alguns produtos que haviam acabado de chegar de uma fazenda próxima. Limpava algumas garrafas de ‘Whiskey John John’, o menos ruim daquela região, segundo seu produtor, o velho e gordo senhor John Parker.

“Robert, que diabos de lugar você se meteu?” — pensava consigo enquanto arrumava os sacos de feijão na entrada da loja para tomarem sol e não mofarem.

Esticou as costas, bateu a poeira de seu avental, se espreguiçou e olhou para frente. Viu que as pessoas da rua estavam atônitas e olhavam para o alto. Sem entender nada, foi para junto delas e olhou também.

Além do sol daquela manhã, de algumas nuvens e de algumas poucas aves que vez ou outra rondavam o matadouro do William Foster, havia algo a mais. Algo que não se encaixava com o cenário. Um objeto flutuava no céu daquela cidade e todos os seus moradores estavam pasmos, tentando entender o que era aquilo.

O objeto era grande, uma grande esfera metálica, reluzia ao sol e parecia contemplar aquela população, que aos poucos, começava a ter alguma reação diante de algo tão surreal.

— É DEUS! É o Juízo Final!! — choramingou a velha senhora Duncan, viúva, gordinha e que já estava de joelhos se pondo a orar e implorar por misericórdia.

— Deve ser um truque dos malditos moleques ruivos do Smith! — bradou Robin Thompson, ferreiro da cidade, que se irritava com essa família desde que os garotos quase atearam fogo em seu estabelecimento há dois invernos.

Robert não conseguia dizer nada. Olhava para o céu. E ficou lá, parado, olhando apenas. Aquela esfera, por sua vez, também estava parada. Algumas pessoas correram e se fecharam em suas casas, alguém retirou a senhora Duncan do chão e a levou para a igreja. Afinal de contas, lá era o local para rezar. Até mesmo Robin se cansou de reclamar e foi tomar uns tragos no bar antes que o dono fechasse as portas do lugar.

Evans estava lá parado. Apenas olhava para cima. Seu corpo magro, alto e queimado pelo sol daquele lugar não se movia. O vento soprava por seus cabelos castanhos. A esfera estava no céu, refletindo a luz solar.

As pessoas tentavam espiar pelas frestas e janelas, mas não tinham coragem de ir lá fora. Robert coçou a barba, arrumou os cabelos, retirou o avental e jogou-o longe. Caminhou em direção àquela esfera, cansou-se de esperar.

Aproximou-se cada vez mais, o ar ficava pesado. Robert respirava com dificuldade, seus passos pareciam pesados. Chegou o mais perto que pode. Olhou para o alto. A esfera estava acima de sua cabeça a uns 8 metros de altura, que equivalia à altura da caixa d’água da cidade.

Subitamente, na superfície metálica da esfera surgiu um ponto negro. Aos poucos foi ampliando seu tamanho até tornar-se uma abertura circular. Nenhum som era emitido nesse processo.

Robert coçou a barba novamente e pensou: “Mal consigo respirar. Que diabos!”

Uma figura pálida surge naquele buraco. Com olhos amarelos, fita Robert. Um sorriso macabro se abre. O homem olha, quase sem piscar para aquela criatura. Algo começa erguê-lo. Não havia luz alguma além da solar. Nenhum som além da respiração dele, cada vez mais ofegante. Subiu para aquele buraco.

As pessoas da cidade, viam a cena sem entender nada, apavoradas com aquele homem levitando, como num show de mágicas e truques baratos. Ninguém tinha coragem de sair, pelo contrário, reforçam as portas e janelas com o que podiam. Estavam tomados pelo pânico. Aquilo não podia ser algo bom.

Entrou na esfera. A criatura pálida o olhava com seus grandes olhos amarelos e seu sorriso macabro mostrava todos seus dentes, pontiagudos, como dentes de tubarão.

De repente, um barulho estranho:

TRIIIM!! TRIIIM!!! TRIIIM!!!!

Robert sente seu corpo cair, a criatura desaparece, tudo some.

Estava em seu quarto de hotel no Arizona. Acordou com falta de ar. Olhou ao redor, não reconhecia nada. O barulho continuava. Olhou para o lado, no criado mudo, aquele aparelho. O telefone toca incessante.

‘Robert’ atende e uma voz lhe diz gentilmente:

— “São 7 horas da manhã, Senhor Jones. Deseja seu café no quarto ou no saguão?”

— “Er… ham…” — titubeou um pouco e por fim respondeu: “no saguão, descerei em meia hora, obrigado.” Desligou o aparelho. Olhou-o uns instantes, tentando entender o que estava acontecendo.

Levantou-se, olhou-se no espelho. Foi ao banheiro, escovou os dentes, tomou um banho, vestiu-se. Penteou seus longos cabelos ruivos e sua barba igualmente ruiva. “É, preciso dar um jeito nessa barba, está desgrenhada. Pareço meu velho tio irlandês.” — pensou consigo mesmo.

Antes de sair, pegou o jornal que o serviço de quarto do hotel já deixara por baixo da porta. Procurou pela data, aliviado leu: “seis de agosto de mil novecentos e setenta e quatro.”

Saiu, trancou a porta. Pegou o elevador e desceu para o café no saguão.

Dentro de seu quarto, atrás de uma das grossas cortinas, uma criatura de olhos amarelos dá um passo para o lado e surge.

Olha para a cama desfeita, o banheiro desarrumado, pega o telefone, disca o número 555 e simplesmente diz:

“Perfeito.”

Abre seu sorriso macabro, deita-se na cama desarrumada e desaparece em seguida.


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Conto de Igor alcantara

O Cachorro Branco

A Morte tem diversas faces. Quando digo Morte, note que inicio a palavra com letra maiúscula, tratamento dado aos nomes próprios. Não se trata de descuido meu. Como sabe, a Morte é uma pessoa, ou uma personificação de um conceito e um universo próprio. Não é uma pessoa como você ou como seu pai e irmãos já que possui uma natureza quase divina, mas mesmo assim tem personalidade, qualidades e defeitos, como qualquer um.

Apenas seus irmãos podem ver o verdadeiro rosto da Morte, ou Gabriel, como prefere ser chamado. Para todos os outros, ele aparece de uma forma diferente: pode ser um animal, um vulto ou mesmo um objeto. Para mim a Morte sempre surgiu na forma de um estranho e assustador cachorro branco.

Desde o momento em que você nasce, a Morte passa a acompanhar os seus passos. Por vezes, você pode vê-la, mesmo não percebendo quem ela é. É o medo do inevitável encontro final que nos faz lutar por este conceito abstrato e tolo chamado vida.

Lá estava eu naquele local distante e esquecido. Estava frio e úmido. Passei a mão sobre a barriga e ela voltou cheia de sangue. Foi quando eu o vi mais uma vez. Primeiro apenas escutei seu latido que aos poucos se tornou mais nítido e próximo. Ajoelhei-me na lama enquanto encarava o corpo esguio do cachorro branco que me encarava de forma ameaçadora. Senti que aquele seria nosso último encontro.

Quando nasci, minha mãe teve complicações no parto que quase foram fatais para mim. Ela me contou essa história em detalhes repetidas vezes. O mais intrigante era ela dizer ter visto uma pequena cadela branca passando pela sala de cirurgia enquanto os médicos se esforçavam para salvar a nós dois. Quando perguntei a ela o que sentiu durante a visão, ela me respondeu que foi o dia em que mais teve medo em toda sua vida.

A morte anda ao nosso lado o tempo todo como estradas paralelas que levam ao mesmo lugar. Um dia, esses caminhos se encontram e nunca mais se separam. Este momento pode chegar quando você menos espera. Talvez você nem consiga terminar de ler este parágrafo, ou mesmo não veja o sol nascer amanhã. Só existe uma certeza: quando a hora se aproximar, Ele vai te olhar diretamente nos olhos.

Aos meus quinze anos de idade, as duas alamedas quase se cruzaram. Eu andava por uma rua escura quando já passava da meia-noite. Ouvi alguém atrás de mim e acelerei meu passo para evitar o encontro. O andar apressado logo se tornou uma corrida, mas não houve como evitar: ele me encontrou.

Era uma pessoa com aproximadamente quarenta anos de idade e tinha uma pequena faca em suas mãos. Pediu que eu lhe entregasse todo o meu dinheiro, mas eu não tinha nada nos bolsos e era por isso que voltava para casa a pé. Fui a uma festa contando com uma carona para regressar, mas o amigo que me traria de volta não foi e eu não havia me planejado para esta possibilidade.

O ladrão irritou-se por ter perdido tempo comigo e anunciou que iria me matar. Foi quando olhei a mão que segurava sua faca e vi uma tatuagem. Era o rosto de um cão. O meu olhar repentino distraiu meu agressor, que achou que eu olhava para algo atrás dele. Por instinto, ele virou de costas e foi minha chance de escapar. Dei-lhe um chute certeiro no joelho que o fez cair e depois um em sua virilha para deixa-lo sem ação enquanto eu fugia assustado.

Deve ser por isso que eu nunca gostei de cachorros. Sempre me deram medo. Quando criança, enquanto todos meus amigos tinham um destes animais de estimação, eu tinha um gato. Era obrigado a ouvir piadas por causa disso, mas nunca me incomodei. Felinos pareciam me trazer sorte, protegendo-me das ameaças que volta e meia rondavam meu caminho. Por muito tempo, achei que se evitasse aquela figura branca e ameaçadora, eu estaria a salvo. Foi até que um evento, aos meus vinte e três anos de idade, mudou tudo.

Estávamos em quatro pessoas: eu ao volante do carro e minha bela namorada ao meu lado e atrás dois amigos muito queridos. Era uma agradável manhã de sábado. Descíamos pela serra em direção ao litoral para aproveitarmos o fim-de-semana na casa de praia de um dos que estavam conosco. 0 som alto tocava uma música que falava de um jovem inocente que prometia que no dia seguinte seguiria o sol, em um sinal de esperança de dias melhores. Sentimento esse compartilhado por todos, mas que me seria arrancado minutos depois.

Após uma curva um pouco mais acentuada, vi surgir no meio da estrada um enorme cão de pelo esbranquiçado, parado como se não temesse a nada. Assustado, virei o volante bruscamente e perdi o controle do carro que capotou seguidas vezes por uma encosta. Fiquei dias no hospital entre a vida e a morte, inconsciente. Durante esse período, eu apenas tive sonhos estranhos. Em um desses, um senhor com terno e sobretudo chegava a um velório com um cachorro preso à coleira. Ele olhava para cada um e se dirigia ao caixão, onde estava eu, deitado, morto, mas de olhos abertos. Este senhor beijava a minha testa e me levava a passear.

Em outro pesadelo, eu ainda era criança e brincava junto a uma matilha de filhotes de lobos, sendo observado pelo líder da matilha, que estava em pé sobre uma rocha alta. Os pequenos lambiam meu rosto e pulavam em cima de mim e eu parecia gostar daquilo. 0 problema é que os sonhos são como a vida: instáveis.
De repente, os filhotes começam a dar pequenas mordidas em mim, o que no começo ignorei por achar ser parte da brincadeira. No entanto, eles passaram a se tornar mais agressivos e as mordidas eram mais intensas e os grunhidos se converteram em rosnados e latidos de ameaças. Tentei fugir, mas estava cercado. Já o lobo alfa, o chefe de todos, apenas olhava, sem demonstrar qualquer emoção.

Quando saí do coma, quis saber sobre os que estavam comigo. Para minha tristeza, minha namorada não resistiu aos ferimentos e morreu antes mesmo de chegar ao hospital. Conversando com os amigos que sofreram o acidente conosco, eles afirmaram que não havia cachorro algum cruzando a estrada. Disseram que eu simplesmente perdi o controle do carro sem motivo aparente. Por várias vezes tentei convencer a todos que minha visão era real, que eu não estava louco, mas para evitar os olhares de condenação, acabei por desistir de minha falida argumentação.

Quando nascemos, a morte passa a nos acompanhar, mas ela não caminha sozinha conosco. Se o cachorro branco andava do meu lado esquerdo, ao direito eu sentia a sombra do inseparável corvo da culpa. Este sentimento me fez diversas vezes assumir a responsabilidades de ações a respeito das quais eu não tinha sido causador. Depois do acidente que vitimou minha namorada, isso aumentou. Eu me senti culpado pela morte dela e esta culpa andou comigo até o dia de hoje. Foi pensando nela e no que a causei que cheguei a tal situação.

Quando me sinto mal e quando a angústia é de tal dimensão que eu não consigo suportar, um dos artifícios que uso é sair para uma boa e longa caminhada, não importa o horário ou as condições climáticas. Andar me faz pensar melhor, refletir na vida e acalmar meu coração freqüentemente abalado. Hoje me senti assim. Não sei explicar o motivo, acho que foi uma série de traumas nos últimos anos que acumularam-se e que hoje chegaram ao seu nível máximo. Nada me fazia acalmar e decidi que era o momento para uma revigorante caminhada. Vesti uma calça, coloquei uma camiseta e meu tênis mais surrado e saí sem destino.

A princípio eu iria apenas dar uma volta no quarteirão, mas ao chegar ao ponto de retornar, decidi ir mais além, até ao centro comercial mais próximo e chegando lá resolvi continuar para mais longe ainda. Eu não sabia aonde queria chegar, apenas precisava  andar e pensar na vida. Quando saí de casa já passava de meia-noite e poucas pessoas circulavam pela vizinhança. No íntimo o que eu desejava era ser parado por algum criminoso que colocasse fim à minha já desgastada vida. Não via motivos para acreditar em um futuro melhor e a caminhada representava a luta e o conflito entre os dois pensamentos que me dividiam: desistir ou ainda ter esperança?

Andar sempre em frente por cerca de duas horas me levou a um famoso parque da cidade que tinha seus portões sempre abertos, mas que naquele horário era o habitat do submundo urbano. De repente senti um pouco de medo e decidi voltar, mas antes disse a mim mesmo que andaria pelo parque por apenas quinze minutos e apenas depois retornaria para casa. Quando fiz a volta para enfim sair daquele local, eu o vi mais uma vez. O grande cachorro branco. Ele estava a trinta metros de mim. Procurei não demonstrar medo e segui em frente, mas então ele passou a rosnar e latir ferozmente. Arrisquei mais alguns passos e a reação do animal foi mais feroz ainda. Eu sabia que se avançasse um metro que fosse, ele iria me atacar. Eu precisava ir embora, mas não podia enfrenta-lo.
Resolvi então pegar uma pedra que estava perto de mim e lançar contra ele de modo a afugentá-lo, mas isso só o deixou mais irritado. Dominado de uma coragem que não havia tido até então, olhei fixamente em seus olhos para mostrar que eu não iria fugir.

Este foi meu erro.
Não se deve jamais encarar a morte, olhar diretamente para ela. Ao fazer isso, nós selamos nosso destino e fazemos com que os caminhos se encontrem de modo e jamais se separarem. Senti uma dor profunda no peito e caí de joelhos. Havia sangue em minha barriga, havia sido atingido por um tiro que veio não sei de onde. A hemorragia era intensa. Minutos depois eu o via correndo em minha direção, mas agora manso como um cãozinho querido a me lamber.
Sempre achei que o tal animal era meu inimigo, mas naquele momento percebi que o que ele fez durante toda a minha vida foi me proteger. Desafiá-lo me fez morrer, mas não enxerguei isso como uma coisa ruim, afinal, a morte era tudo o que eu mais queria naquele momento de dor.


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“COELHOS BOTAM OVOS?”